25 de outubro de 2025
Living Will
No centro da narrativa está Will, um homem idoso que, após a morte do seu cão — o seu último elo afectivo —, se confronta com o vazio e o peso do tempo. A partir desse momento, decide pôr em ordem os assuntos da sua vida, revisitando memórias, arrependimentos e relações passadas. O “testamento” a que o título alude não é apenas legal, mas sobretudo existencial: trata-se de um balanço moral e emocional de uma vida que se aproxima do fim. Em torno de Will orbitam outras personagens — como Betty, uma apresentadora de televisão, ou Terry, um médico —, cujas histórias se cruzam subtilmente, compondo uma teia de solidão, perda e redenção.
O texto de André Oliveira é contido e poético, explorando o silêncio e a sugestão mais do que o diálogo explícito. A estrutura episódica dos fascículos reforça a sensação de fragmento e memória, como se cada parte fosse uma peça de um puzzle emocional. O argumento recusa o melodrama fácil, optando por uma melancolia contida, profundamente humana e universal.
Living Will distingue-se ainda pela coragem formal e temática. Publicar uma banda desenhada portuguesa em inglês, em fascículos de pequena tiragem, foi um gesto ousado e quase artesanal — um verdadeiro acto de resistência artística num mercado dominado por traduções e formatos comerciais. A obra afirma-se, assim, como um exemplo de banda desenhada de autor, introspectiva e literária, que trata temas universais — a passagem do tempo, o sentido da vida, a necessidade de deixar algo de si — com sensibilidade e inteligência.
A reedição integral em português, mais de uma década após o início da publicação, confirma Living Will como uma referência na BD portuguesa do século XXI. É uma história sobre envelhecer, sobre o que significa ter vivido — e sobre a persistente vontade de ser lembrado, mesmo quando tudo o resto se apaga.
A edição apresenta-se com duas capas, um capítulo adicional desenhado por Joana Afonso, uma galeria de imagens por 13 autores convidados: Jorge Coelho, Miguel Rocha, Filipe Abranches, Inês Galo, Carline Almeida, Kachisou, Paulo Monteiro, Carla Rodrigues, Francisco Sousa Lobo, Catarina Paulo, Pedro Brito, Joana Mosi e Filipe Andrade. A obra encerra com uma entrevista aos autores, por Gabriel Martins.
24 de outubro de 2025
Astérix na Lusitânia
O argumento surgiu das visitas dos autores a Portugal, inspirando-se em locais à beira-mar, luz, cores e tradições portuguesas, e na história de Viriato e na produção de garum. O enredo inclui ainda uma personagem lusitana que já apareceu no álbum O Domínio dos Deuses (1971), servindo de elo entre os álbuns.
O álbum, com 48 páginas, levou um ano e meio a ser produzido, mantendo o estilo clássico de Uderzo e apresentando paisagens e personagens portuguesas. A tiragem mundial será de cinco milhões de exemplares em 19 línguas, sendo lançada em Portugal pela editora ASA com 80.000 exemplares, e apresentada no dia 27 de outubro no El Corte Inglés, com o humorista Hugo van der Ding.
Astérix na Lusitânia, Fabcaro e Didier Conrad, ASA, cor, 48 pp., cor, 11,50€
Butterfly Beast II – Volume 5: Segredos no coração do Xogunato
A história segue Ochô, uma kunoichi (ninja feminina) que vive entre dois mundos: o da noite e o do poder. Neste volume, ela é enviada numa missão quase suicida — infiltrar o castelo de Edo, a sede do xogunato Tokugawa.
O objectivo parece simples: descobrir quem anda a vazar informações secretas para shinobi fora da lei. Mas, como em toda boa intriga, nada é o que parece. No interior das muralhas, Ochô encontra-se cercada por cristãos clandestinos, guerreiros convertidos e até pelas atenções inquietantes do próprio xógum.
O resultado é um enredo denso, onde cada personagem carrega segredos e cada gesto pode ser fatal.
Yuka Nagate volta a provar que Ochô é uma das protagonistas femininas mais fascinantes do manga histórico contemporâneo. Bela, letal e profundamente humana, ela não é uma simples guerreira: é uma mulher em conflito com o seu próprio papel num mundo que a usa como arma e a teme como ameaça.
No castelo, vemos um lado mais vulnerável da personagem — a dúvida, o medo, o desejo — elementos que a tornam mais real, e que transformam a história em algo mais do que pura ação ninja.
Este volume destaca-se também pela introdução de cristãos escondidos, um tema raramente explorado em mangas de ação. Durante o período Edo, o cristianismo era proibido, e os que mantinham a fé viviam nas sombras. Nagate aproveita este pano de fundo histórico para questionar o que significa acreditar — e trair — num tempo de proibições.
Entre os conspiradores e os leais, há também os “shinobi reconvertidos”: antigos espiões que mudaram de lado, levantando uma questão central no manga — em quem se pode confiar quando todos são mestres da mentira?
Com este quinto volume, Butterfly Beast II chega a um momento decisivo. A protagonista deixa de agir nas margens do poder e entra, finalmente, no coração do império, onde cada erro pode custar-lhe a vida.
Nagate conduz a narrativa com mão firme — equilibrando acção e introspecção, erotismo e política — e prepara o terreno para o que promete ser o clímax da saga.
Butterfly Beast II – Volume 5, Yuka Nagate, A Seita, 216 pp., p&b, capa mole, 11,99€
O Profeta, de Khalil Gibran — adaptação de Zeina Abirached
A linguagem de Gibran é simultaneamente simples e espiritual, profundamente simbólica, marcada por um lirismo que combina o misticismo oriental e a filosofia universal. A sua mensagem, intemporal e humanista, procura inspirar uma vida guiada pelo amor e pela compreensão do divino em cada gesto quotidiano.
Quase um século depois, a ilustradora e autora libanesa Zeina Abirached — conhecida pelas suas obras autobiográficas em banda desenhada, como A ovelha ou A Dança das Andorinhas — apresenta uma adaptação gráfica integral de O Profeta, publicados na edição portuguesa em dois volumes pela Levoir com o apoio do jornal Público.
Nesta versão, Abirached não reescreve nem simplifica o texto: preserva a totalidade das palavras de Gibran, acompanhando-as de uma narrativa visual que amplifica o sentido espiritual e poético do original. O resultado é uma fusão entre palavra e imagem, em que o traço preto e branco da autora cria uma atmosfera de recolhimento, silêncio e contemplação.O desenho de Zeina Abirached é caracterizado por fortes contrastes de luz e sombra, composições geométricas e uma estética próxima da caligrafia árabe. As suas imagens evocam a arquitectura das cidades do Médio Oriente, os gestos do quotidiano e os espaços interiores onde o pensamento se recolhe.
Esta abordagem visual não serve apenas para ilustrar o texto — é uma interpretação poética das palavras de Gibran. A artista transforma conceitos abstractos, como “liberdade” ou “morte”, em cenas simbólicas que convidam o leitor a parar, a respirar e a escutar.
Os temas centrais de O Profeta mantêm hoje uma extraordinária actualidade. Falam-nos da necessidade de equilíbrio entre o corpo e o espírito, da relação entre o indivíduo e a comunidade, do amor como força criadora e libertadora. Na adaptação de Abirached, essas ideias ganham nova vida através da imagem: o olhar do profeta, os rostos dos habitantes, o movimento do mar e das sombras tornam visível o que o texto sugere — a busca de sentido num mundo em mudança.
Por ser também libanesa, a artista estabelece uma ponte afectiva com Gibran, resgatando uma herança cultural comum e traduzindo-a para o contexto contemporâneo da arte e da banda desenhada.
O Profeta, Zeina Abirached, 2 volumes, Levoir, p&b, 192 pp. cada volume, capa dura, 15,90€ por volume
23 de outubro de 2025
AmadoraBD 2025: mais dias, mais autores e novas iniciativas
22 de outubro de 2025
“Cadáver Esquisito”: A maior banda desenhada colectiva portuguesa ganha nova vida em livro
O projecto teve início em 2008, muito antes de as webcomics se tornarem tendência. Na altura, Daniel Maia decidiu criar um blogue próprio para acolher uma banda desenhada colectiva, construída página a página por diferentes autores. A regra era simples e inspirada no jogo surrealista cadavre exquis: cada autor ou dupla (argumentista e desenhador) acrescentava uma nova página, dando continuidade ou subvertendo a narrativa anterior, enquanto Daniel Maia assegurava uma coerência narrativa que unificasse o resultado final.
O resultado é uma história tão improvável quanto fascinante: “Um incidente num hotel precipita situações insólitas que revelam uma intriga. Uma trindade de Papas faz testes à inovadora tecnologia U.M.D. (Unidade Molecular Destemporizadora), criada pelo Prof. Octávio, que suspende o espaço-tempo numa área limitada.”
Entre 2008 e 2015, a obra foi sendo publicada online, atraindo uma comunidade crescente e diversificada de criadores. Muitos dos participantes eram nomes já reconhecidos da BD nacional, enquanto outros deram aqui os seus primeiros passos. Entre os mais de 50 autores estão André Caetano, Daniel Henriques, Diogo Carvalho, Miguel Mendonça, Kati Zambito, Zé Burnay, Hugo Jesus, Maria João Careto, Sónia Oliveira e Pedro Nascimento, entre muitos outros.
A edição agora lançada em livro reúne 58 páginas da versão original do webcomic, complementadas por uma nova narrativa intitulada A Vingança do Cadáver, que funciona como epílogo e encerra este ciclo criativo de forma inédita.
A apresentação oficial acontece no sábado, no festival AmadoraBD, o maior evento nacional dedicado à banda desenhada.
Com esta edição, Daniel Maia — que fundou a Arga Warga há duas décadas — concretiza um dos projectos mais ambiciosos da BD portuguesa contemporânea.
O autor, nascido em Lisboa em 1978, tem um percurso que abrange criação, crítica, produção e edição, tendo colaborado com editoras como Marvel, Dark Horse Comics, Platinum Pub., Chiaroscuro Studios, Ala dos Livros e Saída de Emergência Edições.
Cadáver Esquisito é mais do que uma banda desenhada — é um manifesto colectivo de liberdade criativa, um retrato da imaginação nacional e da força da colaboração artística.
Cadáver Esquisito, colectivo, Arga Warga, 64 pp., p&b, capa mole, 10€









