A cidade da Deusa — Terrea — é o centro irradiador desta saga fantástica. Rival das enigmáticas Três Sombras, é a partir dessa tensão primordial que se desenrola um universo onde exércitos fracassados, viajantes entre mundos e forças obscuras coexistem num equilíbrio precário. A narrativa, porém, não se impõe de forma convencional. Há algo de orgânico na evolução deste projeto, como se cada vinheta fosse uma porta, cada página um gesto de intuição. O que começou, em 2015, como um pequeno livro A5 de desenhos automáticos, impressos em serigrafia, foi-se metamorfoseando em banda desenhada — primeiro insinuada, depois plenamente assumida.
Essa transformação é, talvez, a maior força de Terrea: vê-se no traço, que oscila entre a precisão arquitetónica e a vibração onírica; sente-se na composição, que não tem receio de sobreposições, rupturas, progressões inesperadas. É um livro que convida o leitor a entrar por camadas, mais sensorial e atmosférico do que explicativo, mas sempre guiado por uma coerência interna que vai surgindo — quase como um ritual — à medida que avançamos.
Ricardo Cabral, autor lisboeta com um percurso sólido na banda desenhada portuguesa, tem vindo a explorar desde cedo a relação entre observação e ficção. Os seus livros de viagens — Israel Sketchbook, NewBorn – 10 dias no Kosovo ou Pontas Soltas — mostram-nos um olhar atento ao real, mas Terrea sugere que essa mesma atenção pode ser transposta para o fantástico. Aqui, o autor revela-se tanto arquitecto de mundos como intérprete de atmosferas. E se a sua colaboração recente com a Dark Horse (Wiper e Summer Shadows, ambos escritos por John Harris Dunning) comprova a sua versatilidade, Terrea é talvez o projecto onde essa versatilidade se exprime com maior liberdade.
Este volume coloca fim ao primeiro ciclo de Terrea, reunindo capítulos dispersos, inclusive inéditos, e oferecendo ao leitor uma visão total da evolução do universo da Deusa. Mas fica a impressão — assumida ou não — de que este fim é também um ponto de partida. A cidade continua ali, silenciosa, à espera de ser redescoberta. E o mundo que Cabral ergueu, com a delicadeza de quem desenha para ver melhor, não parece de modo algum esgotado.
Terrea é, no fundo, uma prova de que a banda desenhada portuguesa continua a ser um território fértil para a experimentação visual e narrativa. E um lembrete de que, às vezes, as grandes sagas começam com um simples gesto: o traço que surge sem intenção, mas que insiste em contar uma história.
Terrea, Ricardo Cabral, A Seita, 64 pp., cor, capa dura, 24€


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