29 de outubro de 2025

"A cor das coisas" - Uma leitura fora do comum: Martin Panchaud e o seu “novo pacto” com o leitor

Quando nos propomos a ler um livro ou uma banda desenhada, tendemos a partir de pressupostos familiares: personagens com rosto, narrativa linear, linguagem gráfica reconhecível. Pois bem, com o álbum  A cor das coisas (La couleur des choses) de Martin Panchaud, estamos perante uma proposta que desafia esses pressupostos e nos exige outro tipo de atenção e de colaboração.

Martin Panchaud é um autor e ilustrador suíço, nascido em 1982 em Genebra, e actualmente a residir em Zurique. 

A sua obra parte de uma condição pessoal — uma forte dislexia — que o impeliu a reflectir sobre a leitura, sobre o símbolo, sobre a interpretação de formas e cores em detrimento da literalidade verbal. É também um autor que navega entre o design gráfico, a infografia e a banda desenhada, fundindo estas linguagens num estilo pouco convencional. 

A premissa desta obra é aparentemente simples — e até pode soar a enredo de thriller juvenil: Simon, de 14 anos, é alvo de bullying por ser um pouco “gordinho”, sente-se excluído, faz-se útil para todo o tipo de encargos para sobreviver no seu bairro.

Num destes dias, uma cartomante indica-lhe o cavalo vencedor de uma grande corrida (Royal Ascot). Simon reúne então a poupança do pai, aposta, ganha uma enorme soma — mas ao regressar, encontra a mãe em coma e o pai desaparecido. A partir daqui, inicia-se uma aventura em busca do pai, da verdade, da própria identidade.

Mas o que distingue este livro não é tanto o enredo — que, de resto, apesar de bem construído, não é o mais revolucionário — mas a forma:

Todos os personagens são representados como círculos de cor, sem traços faciais ou corpos definidos;

A narrativa gráfica adopta uma vista top-down, quase como quem está a observar mapas, diagramas ou infografias — portanto, sem perspectiva convencional. 

Elementos como arquitectura, pictogramas, linhas de ligação entre as personagens e as falas, itens de interface gráfica, tornam-se parte integrante da leitura. 

Este conjunto formal resulta num “novo pacto” com o leitor, no sentido em que somos convidados a preencher nós próprios muitas lacunas — emocionalmente, visualmente e narrativamente. Panchaud explica que ao “ocultar” corpos e rostos, confia no leitor para “dar voz” e “dar corpo” às figuras abstraídas.

A cor das coisas, Martin Panchaud, Levoir, 244 pp., cor, capa dura, 29,90€

28 de outubro de 2025

GEO – Número especial « Astérix à la rencontre du monde! »

A revista GEO, conhecida pelas suas reportagens foto-jornalísticas de grande qualidade e pela sua «abertura ao mundo», publicou um número especial intitulado Astérix à la rencontre du monde! (n.º 57H), por ocasião do lançamento do álbum Astérix na Lusitânia.

Este número, datado de Outubro de 2025, põe em destaque as viagens dos célebres gauleses Astérix e Obélix através dos povos e regiões que visitaram ao longo da série.

Eis as principais secções deste número especial:

Uma exploração dos destinos que os gauleses « visitaram » nos seus álbuns: Portugal (Lusitânia), Córsega, Escócia, Espanha…

Reportagens fotográficas e jornalísticas sobre esses lugares : culturas, tradições, gastronomia.

Uma entrevista com os autores do álbum Astérix na Lusitânia — o argumentista Fabcaro e o desenhador Didier Conrad — que revelam os bastidores da criação.

O número especial Astérix à la rencontre du monde! da GEO constitui uma ponte bem-sucedida entre cultura popular e reportagem documental.

Lê-se como um belo objecto de curiosidade para todos os que apreciam Astérix, as viagens através das páginas, ou a descoberta de como o universo da banda desenhada pode tornar-se um verdadeiro território de exploração.

GEO – Número especial « Astérix à la rencontre du monde! », Octobre 2025, 124 pp. cor

27 de outubro de 2025

A Fera #2

O segundo volume de A Fera encerra um díptico que revisita o mítico Marsupilami — criado originalmente por Franquin — agora reinventado sob a batuta de Zidrou no argumento e Frank Pé na arte.

Publicado em Portugal pela editora A Seita, este álbum oferece não só o desfecho da narrativa iniciada no primeiro volume, mas também uma série de extras valiosos: uma história adicional e um dossier histórico que transformam o livro em algo mais do que uma simples banda desenhada — um verdadeiro objecto de colecção.

O primeiro volume apresentou a premissa: um animal exótico, antepassado do célebre Marsupilami, é trazido da América do Sul para a Bélgica dos anos 1950, onde acaba por escapar e encontrar abrigo junto de um rapaz, François.

O segundo volume retoma a acção em Bruxelas, em 1956, numa Bélgica ainda marcada pelas feridas da guerra — uma cidade cinzenta e chuvosa, em contraste com a selva tropical de onde provém a fera.

Frank Pé confirma-se como um dos grandes mestres da banda desenhada franco-belga. O seu traço é simultaneamente expressivo e naturalista, revelando um domínio notável da anatomia animal e humana. A paleta cromática é rica, alternando tons sombrios e quentes para traduzir a dualidade entre selva e cidade.

O formato generoso da edição portuguesa (capa dura, grande formato, mais de duzentas páginas) reforça o estatuto artístico e o cuidado gráfico do projecto.

A Fera – Volume 2 é uma conclusão digna e comovente, que encerra com brilho um projecto ambicioso: reimaginar o Marsupilami como criatura real, com alma e sofrimento.

Zidrou e Frank Pé assinam uma narrativa belíssima, plena de humanidade, que conjuga ternura, tragédia e espanto.

Mais do que uma homenagem a Franquin, A Fera é uma reflexão sobre a liberdade, a empatia e a capacidade de imaginar — uma das obras mais notáveis da banda desenhada europeia contemporânea.

A Fera #2, Frank Pé e Zidrou, A Seita, 224 pp., cor, capa dura, 32€

26 de outubro de 2025

Living Will - Ensaio de quadriculografia portuguesa


Ficha técnica:

Romance gráfico
(Portugal) Ave Rara, 1980
André Oliveira (argumento) e Joana Afonso (desenho)
Outras publicações: Polvo

A história centra-se em Will, um homem idoso que, após a morte do seu cão — o seu último laço vivo — sente que a sua vida perdeu propósito.  Ele, já tendo ultrapassado os 80 anos e com o peso de várias decisões e arrependimentos acumulados, resolve “atar as pontas soltas” da sua vida. 
Paralelamente surgem outras personagens (como Betty, uma apresentadora de TV, e Terry, um médico) cujas jornadas e conexões com Will ajudam a construir uma narrativa sobre existência, remorso, e o desejo de deixar algo para trás. Os sete volumes estão em língua inglesa e o integral em português.

Quadriculografia portuguesa:
  • Livro 1, Ave Rara [2013]
  • Livro 2, Ave Rara [2014]
  • Livro 3, Ave Rara [2014]
  • Livro 4, Ave Rara [2015]
  • Livro 5, Ave Rara [2015]
  • Livro 6, Ave Rara [2017]
  • Livro 7, Ave Rara [2018]
  • [integral], Polvo [2025]*
* tem a participação de Pedro Serpa.

[actualizado em 25.10.2025]

Sou um anjo perdido - Um policial em Barcelona

Óculos escuros, cigarro nos lábios, pele à mostra por baixo de uma minissaia — a excêntrica psiquiatra Eva Rojas está de volta!

Dezoito meses após os acontecimentos relatados em Je suis leur silence, ela observa, do alto de um guindaste, duas pernas que sobressaem de uma laje de betão — o que não augura nada de bom.

A inspetora Merkel e o seu adjunto, García, terão de a interrogar, sendo ela a única testemunha ocular. Mas nada é simples com Eva: aceita responder, sim, mas apenas na presença do seu… psiquiatra!

E então conta à polícia — e também ao Dr. Llull —, em pormenor, os sete dias que antecederam o incidente.

Um dos seus pacientes, João, de 19 anos, jovem estrela em ascensão do futebol, desapareceu. O clube responsabiliza-a e exige que o encontre em seis dias. Para o bem e para o mal, Eva pode contar com as “vozes” que a acompanham — as das suas antepassadas, falecidas há muito, mas ainda muito presentes! E ainda mais presentes quando Eva visita a mãe no hospital psiquiátrico… ou quando se aproxima um pouco demais dos neonazis.

Jordi Lafebre teve a excelente ideia de voltar a reunir as personagens de Je suis leur silence para uma nova investigação! Alternando suspense e humor em diálogos irresistíveis, o autor não deixa de evocar as neuroses que se transmitem de geração em geração. Um regresso inesperado — e mais do que bem-sucedido!

Sou um anjo perdido - Um policial em Barcelona, Jordi Lafebre, Arte de Autor, 128 pp., cor, capa dura, 29,50€

25 de outubro de 2025

Astérix na Lusitânia - Lançamento

 


Living Will

Living Will é uma das obras mais singulares e marcantes da banda desenhada portuguesa contemporânea. Criada por André Oliveira (argumento) e Joana Afonso (ilustração principal), com participação posterior de Pedro Serpa, esta série foi publicada originalmente entre 2013 e 2018 pela editora Ave Rara, em sete fascículos curtos, todos escritos em inglês — uma escolha invulgar que reflectia a ambição de projectar a obra além-fronteiras. Em 2025, a série foi finalmente reunida e traduzida para português numa edição integral da Editora Polvo, sinal do reconhecimento e da durabilidade do seu impacto artístico.

No centro da narrativa está Will, um homem idoso que, após a morte do seu cão — o seu último elo afectivo —, se confronta com o vazio e o peso do tempo. A partir desse momento, decide pôr em ordem os assuntos da sua vida, revisitando memórias, arrependimentos e relações passadas. O “testamento” a que o título alude não é apenas legal, mas sobretudo existencial: trata-se de um balanço moral e emocional de uma vida que se aproxima do fim. Em torno de Will orbitam outras personagens — como Betty, uma apresentadora de televisão, ou Terry, um médico —, cujas histórias se cruzam subtilmente, compondo uma teia de solidão, perda e redenção.

O texto de André Oliveira é contido e poético, explorando o silêncio e a sugestão mais do que o diálogo explícito. A estrutura episódica dos fascículos reforça a sensação de fragmento e memória, como se cada parte fosse uma peça de um puzzle emocional. O argumento recusa o melodrama fácil, optando por uma melancolia contida, profundamente humana e universal.

A arte de Joana Afonso é um dos grandes trunfos da obra. Com um traço expressivo e uma paleta de cores que varia de volume para volume — tons quentes, frios ou neutros, consoante o estado emocional do enredo —, a artista constrói uma atmosfera visual coerente e profundamente sensorial. O uso da cor como elemento narrativo é notável: cada fascículo adquire uma identidade própria, quase como uma emoção visual distinta. Já as contribuições de Pedro Serpa, nos volumes quatro e seis, introduzem um estilo diferente, mais contido e realista, o que causou alguma ruptura visual, mas também acrescenta uma camada de contraste à leitura da obra completa.

Living Will distingue-se ainda pela coragem formal e temática. Publicar uma banda desenhada portuguesa em inglês, em fascículos de pequena tiragem, foi um gesto ousado e quase artesanal — um verdadeiro acto de resistência artística num mercado dominado por traduções e formatos comerciais. A obra afirma-se, assim, como um exemplo de banda desenhada de autor, introspectiva e literária, que trata temas universais — a passagem do tempo, o sentido da vida, a necessidade de deixar algo de si — com sensibilidade e inteligência.

A reedição integral em português, mais de uma década após o início da publicação, confirma Living Will como uma referência na BD portuguesa do século XXI. É uma história sobre envelhecer, sobre o que significa ter vivido — e sobre a persistente vontade de ser lembrado, mesmo quando tudo o resto se apaga.

A edição apresenta-se com duas capas, um capítulo adicional desenhado por Joana Afonso, uma galeria de imagens por 13 autores convidados: Jorge Coelho, Miguel Rocha, Filipe Abranches, Inês Galo, Carline Almeida, Kachisou, Paulo Monteiro, Carla Rodrigues, Francisco Sousa Lobo, Catarina Paulo, Pedro Brito, Joana Mosi e Filipe Andrade. A obra encerra com uma entrevista aos autores, por Gabriel Martins.

Living Will, André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa, Polvo, 180 pp., cor, capa mole, 24,95€